sexta-feira, 17 de outubro de 2008

VERSÕES PARA O ENTERRO DE DOMINGO

Naquela manhã dominical, o sol brilhava triste. Todos velavam a grande perda: Domingos. Solteiro, bonito, jovem, cheio de vida, e querido por muitos.

- Era um bom homem. Ouvia-se dizer em um comentário quase uníssono.

Eu disse quase.

1ª versão.

O pai estava lá, com a mãe e um casal de irmãos. O velho senhor austero mantinha a postura forte e firme da família. A mãe - e só quem é mãe sabe o que ela estava sentindo naquela hora – desolada e inconsolável. Os dois irmãos também, inconformados com a perda do estimado primogênito.

Como se estivessem em campanha, amigos e parentes todos ali. Os de infância, que cresceram e conviveram com ele momentos vários. Do mesmo modo, a turma do trabalho marcava presença, prestigiando àquele que foi um funcionário exemplar, um homem de destaque. Figuravam homens sérios, porém consternados pela perda de um futuro promissor; e mulheres, entre jovens, senhoras e beatas, que o conheciam desde infante. De contraste, crianças inocentes estavam ali, sem saber do que se tratava, como anjos que vieram buscá-lo.

Palestrantes de vários grupos religiosos vieram solenizar sua passagem para o mundo espiritual, e emanavam seus cânticos de celebração em homenagem a Domingos…

- Mas como ele morreu?

- Foi encontrado numa cama. Reposta vacilante. Soou inocente, mas o arrepio geral.

- Estão dizendo por aí que era de casal…

Novos fatos surgem, e, de súbito, começa aqui a derrocada; a ruir-lhe a reputação.

2ª versão.

Comentam que o Domingos era um boêmio, Casablanca, gostava da noite, jogos, e mulheres.

O pai estava ali sóbrio, mas na verdade, vivia entristecido, amargurado com o filho. A mãe vai ver era até enganada, coitada; não sabia da vida pregressa do filho. Do irmão mais novo, suspeitam de que estava seguindo seus passos; e a irmã – ah! Essa aí! – à boca pequena, diziam que não era tão confiável assim.

Por isso notava-se um ambiente desigual. De um lado, homens que pareciam sérios até demais, ninguém sabe por que não sorriam ou choravam. Senhoras que posavam de ex-futuras sogras choramingando. Não sei se de raiva ou de desgosto. E as jovens? Estas eram aos montes, e que causavam inclusive constrangimento entre as mesmas. Ficavam deslocadas, inseguras de saber se aquela que lhe fitava era amante, namorada, ou a noiva. O que diziam das crianças é que podiam ser todos herdeiros. Mas, a vida de boêmio não é um legado justo a eles.

O burburinho no local era desconcertante. Um congresso de conjecturas e entreolhares. Nada se ouvia, mas tudo se dizia.

Ali, oradores oportunistas insistiam em pregar tamanha ladainha, numa desorganização sem precedentes.

- Foi envenenado! Sussurraram o imbróglio.

Imediatamente, como uma metástase maligna, aparecem as conclusões –

3ª versão.

- Eu já sabia. Bem que desconfiava desde o princípio. Com certeza foi encomendado, acerto de contas!

Domingos era um Don Juan daqueles, que não liberava ninguém: nem garotinhas, passando por mulheres casadas e até viúvas. Um ‘terrorista’, e ainda costumava dar calote na praça.

Mas, igualmente era sua família: O pai era um bêbado que tinha vergonha do filho. Não sei como estava de pé ali. A mãe, que chorava também de vergonha, apanhava do marido e parecia prever este fim para o esquife. O irmão mais novo costumava ‘passar’ as férias no reformatório; e a irmã tinha por codinome a ‘Rainha da noite’.

Os comparsas de infância, a quadrilha de delinqüentes posicionava-se perfilada ao lado do caixão. Pareciam que iam saudar-lhe com uma saraivada de tiros. Obrigados pela praxe da empresa, que da qual este infausto ser parecia freqüentar, alguns funcionários marcavam presença como se fosse dia de ponto – ninguém gostava do falecido: Ele parecia honrar o nome que tinha. Era considerado o ‘Rei do nó’ no trabalho.

Desconhecidos presentes permaneciam lá, como maridos traídos ou credores; possíveis executores ou mandantes do crime. Uma coleção de mulheres e senhoras que passaram pelas mãos, - e outras coisas dele - controlavam vergonhosamente o desespero. Mães consolavam suas filhas: não sei se choravam de raiva ou de desgosto. E jovens, com cara de garota de programa, pareciam ter trabalhado na noite anterior em casa noturna, e vieram direto pra cá com seus vestidos de noite decotados. As crianças – pasmem! - eram sobreviventes que ele não conseguiu fazer que suas ‘ex’ tirassem.

O local era um conluio de inocentes e culpados. Do mesmo modo que era constrangedor, era aterrorizante. A qualquer momento, poderia o ambiente se tornar uma esbórnea o um massacre sangrento.

Alguns mais exaltados rogavam suas pragas como podiam. O que pudesse fazer para atrasar ou adiar sua chegada aos céus, eles faziam. E, com este sol infernal de rachar, Aquilo parecia um cortiço insuportável.

- Ele já vai é tarde! Sentenciou alguém, finalmente.

***

Enfim, Mais uma semana começava; e esta, com um domingo daqueles. Devido à discrição da família, ou por que ninguém nunca mesmo quis averiguar a fundo a causa-mortis, nunca se soube de fato o que aconteceu. E, a única verdade nessa historia é que o Domingos se foi, calmo, tranqüilo e sereno. Ou não.

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